segunda-feira, 2 de maio de 2011

ANÁLISE DE OBRAS


Os Sertões, de Euclides da Cunha / Análise da obra

Os Sertões dá início ao que se chama de Pré-Modernismo na literatura brasileira, revelando, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. Euclides da Cunha critica o nacionalismo exacerbado da população litorânea que, não enxergando a realidade daquela sociedade mestiça, produzida pelo deserto, agiu às cegas e ferozmente, cometendo um crime contra si própria; o que é o grande tema de Os Sertões. Em tom crítico, também mostra o que séculos de atraso e miséria, em uma região separada geográfica e temporalmente do resto do país, são capazes de produzir: um líder fanático e o delírio coletivo de uma população conformada.

Todos os importantes questionamentos e as grandes formulações sociológicas, antropológicas, históricas e políticas para compreender o Brasil, antes e depois da República, tiveram seu embrião nas páginas de Os Sertões.

A obra  revela, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. A transição de valores tradicionais para modernos está na denúncia que faz da realidade brasileira, até então acostumada a retratar um Peri, uma Iracema, um gaúcho, ícones do nosso Romantismo. Evidencia, pela primeira vez em nossa literatura, os traços e condições reais do sertanejo, do jagunço; "a sub-raça" que habita o nordeste brasileiro; o herói determinista que resiste à tragédia de seu destino, disfarçando de resignação o desespero diante da fatalidade. Essa ruptura de visão de mundo gera também um rompimento no plano lingüístico. A objetividade científica na abordagem de um problema leva o autor a buscar termos precisos e, nesta escolha, sua linguagem torna-se especializada e, por isso, às vezes difícil, mas que se justifica pelo objetivo de tornar exata a comunicação das idéias.

Considerada uma das obras-primas da literatura brasileira, Os Sertões, publicada em 1902, ano de sua primeira edição, cinco anos após a campanha de Canudos, cujo trágico desfecho Euclides da Cunha testemunhou como repórter de O Estado de São Paulo, apresenta não só um completo relato da Campanha de Canudos, que foi a luta sangrenta contra os fanáticos chefiados por Antônio Conselheiro, os quais ameaçavam a segurança das cidades e povoações vizinhas, mas apresenta ainda um admirável estudo da terra e do homem do sertão nordestino, das condições de vida do sertanejo, da sua resistência e capacidade, de acordo com a visão de Euclides da Cunha. Ele foi o único jornalista que atentou para a valentia dos jagunços.

Da primeira à última página, O Sertões é uma obra que incomoda. Ele foi escrito exatamente para isso. Para instigar, provocar a pesquisa e estimular a procura da verdade. É um livro contra o conformismo. É um livro de idéias e soluções, de questionamentos e proposições ousadas. Já é lugar comum dizer que algumas de suas conceituações científicas não resistiram à evolução. Contém os vícios ou distorções típicos da época.

É uma narrativa da insurreição de um grupo de fanáticos religiosos e não só descreve a sociedade mas também a geografia, geologia, e zoologia plana do sertão brasileiro. Com seu apurado estilo jornalístico-épico, traça um retrato dos elementos que compõem a guerra de Canudos: A Terra, O Homem e A Luta.  A descrição minuciosa das condições geográficas e climáticas do sertão, de sua formação social: o sertanejo, o jagunço, o líder espiritual, e do conflito entre essa sociedade e a urbana, mostra-nos um Euclides cientificista, historicista e naturalista que rompe com o imperialismo literário da época e inicia uma análise científica em prol dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira.

A primeira parte, A Terra, descreve o cenário em que se desenrolou a ação. Euclides da Cunha, num apanhado geral, estudou os caracteres geológicos e topográficos das regiões que estão entre o Rio Grande do Norte e o sul de Minas Gerais, de modo particular a bacia do rio São Francisco. Nos sertões do norte, fala discorre sobre a seca, das causas da mesma, dando relevo especial ao papel do homem como agente geológico da destruição, que ao praticar desde os tempos mais remotos a agricultura primitiva baseada em queimadas, arrasou as florestas. Os desertos, a erosão, o ciclo das secas terríveis vieram em seguida.

A segunda parte, O Homem, completa a descrição do cenário com a narrativa das origens de Canudos. Ali Euclides da Cunha estudou a gênese do jagunço e, principalmente, a de seu líder carismático, Antonio Conselheiro. Falou de raças (índio, português, negro), e de sub-raças (que indica com o nome "mestiço"). Em O Homem o autor caracterizou o sertanejo como "Hércules-Quasímodo", usando antíteses e paradoxos (Hércules era um semi deus latino, encarnação de força  e valentia; Quasímodo era sinônimo de monstrengo, de pessoa disforme, personagem de Nossa Senhora de Paris, romance de Victor Hugo). Preparando o ambiente para os episódios de Canudos, Euclides da Cunha expôs a genealogia de Antônio Conselheiro, suas pregações e a fixação dos sertanejos no arraial de Canudos.

A terceira parte, A Luta, é a mais importante, constituída da narrativa das quatro expedições do Exército enviadas para sufocar a rebelião de Canudos, que reunia "os bandidos do sertão": jagunços (das regiões do Rio São Francisco) e cangaceiros (denominação no Norte e Nordeste). Havia cerca de 20.000 habitantes no arraial, na maioria ex-trabalhadores dos latifúndios da região.

Dividida em seis subtítulos (Preliminares, Travessia do Cambaio, Expedição Moreira César, Quarta Expedição, Nova Fase da Luta e Últimos Dias) completou, por sua vez, o elenco dos personagens esboçado na segunda parte (O Homem), quer estudando-os em conjunto, como no trecho Psicologia do Soldado, quer em closes particularizantes, como no retrato físico e psicológico do coronel Antônio Moreira César.

Início da luta
As autoridades de Juazeiro se recusam a mandar a madeira que Antônio Conselheiro adquirira para cobrir a igreja de Canudos; os jagunços, então, pretendiam tomar à força o que haviam comprado e pago. Avisado das intenções dos homens de Conselheiro, o governo do Estado manda que em Juazeiro se organize uma força que elimine o foco de banditismo.
A primeira expedição - Cem homens, comandados pelo tenente Pires Peneira, são surpreendidos e derrotados pelos jagunços no povoado de Uauá.
A segunda expedição - Quinhentos homens, comandados pelo major Febrônio de Brito e organizados em colunas maciças, são emboscados pelos jagunços em terrenos acidentados, no Morro do Cambaio e em Tabuleirinhos. Destacam-se os “bandidos” João Grande e Pajeú, este último considerado por Euclides verdadeiro gênio militar. Reduzidas a cem homens, as tropas do governo decidem voltar.
A terceira expedição - Mil e trezentos homens, comandados pelo coronel Moreira César, armados com canhões Krupp — recém-importados da Alemanha —, sem planos definidos, partiram em fevereiro de 1897, atacando de frente, do Morro da Favela, o arraial de Canudos. Os jagunços, protegidos pela irregularidade do relevo, buscavam o corpo-a-corpo e desorganizaram as tropas, que na retirada desastrosa deixaram para trás armas, munições, os canhões Krupp e o próprio general Moreira César, morto após ter sido ferido em combate.
A quarta expedição - Cinco mil homens, comandados pelos generais Artur Oscar, João da Silva Barbosa e Cláudio Savaget, são enviados pelo sul. As tropas dividem-se em duas colunas. A primeira é cercada pelos jagunços no Morro da Favela e tem de se socorrer da segunda coluna que, vitoriosa em Cocorobó, havia mudado de estratégia, dividindo-se em pequenos batalhões. As duas colunas tentam um ataque maciço. Conseguem tomar boa parte do arraial, mas os soldados mal resistem à fome e à sede.

Em agosto de 1897, oito mil homens deslocam-se para a região, comandados pelo próprio ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt.

São cortadas as saídas de Canudos, o abastecimento de água é interrompido. Um tiro de canhão atinge a torre da Igreja. Estóicos, esperando a salvação eterna, os sertanejos não se renderam, e muitos foram degolados após o assalto final.. Perpetrou-se dessa forma o crime de uma nacionalidade inteira, no dizer de Euclides da Cunha, que a tudo acompanhou do Morro de Uauá, de onde escrevia suas reportagens para o jornal A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, mais tarde refundidas nessa obra monumental que são Os Sertões.


Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

Análise da obra

Publicado inicialmente em folhetins do Jornal do Comércio entre agosto e outubro de 1911 e depois em livro em 1916, Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra mais famosa de Lima Barreto, condensa em si muitas das características que consagraram seu autor como o melhor de seu tempo.

A obra focaliza fatos históricos e políticos ocorridos durante a fase de instalação da república, mais precisamente no governo de Floriano Peixoto (1891 - 1894). Seus ataques, sempre escachados, derramam-se para todos os lados significativos da sociedade que contempla, a Primeira República, ou seja, as primeiras décadas desse regime aqui no Brasil.

Assim, Lima Barreto encaixa-se no Pré-Modernismo (1902-22), pois, respeita códigos literários antigos (principalmente o Naturalismo, conforme anteriormente apontado), mas já apresenta uma linguagem nova, mais arejada em relação ao momento anterior.

O romance narrado em terceira pessoa, descreve a vida política do Brasil após a Proclamação da República, caricaturizando o nacionalismo ingênuo, fanatizante e xenófobo do Major Policarpo Quaresma, apavorado com a descaracterização da cultura e da sociedade brasileira, modelada em valores europeus.

Divertido e colorido no início, o livro se desdobra no sofrimento patético do major Quaresma, incompreendido e martirizado, convertido numa espécie de Dom Quixote nacional, otimista incurável, visionário, paladino da justiça, expressando na sua ingenuidade a doçura e o calor humano do homem do povo.

O romance anuncia no título o seu desfecho pouco alegre, apesar do enredo em que os efeitos cômicos estão aliados ao entusiasmo ingênuo do personagem central e ao seu inconformismo e obsessões. Quaresma é um tipo rico em manifestações inusitadas: seus requerimentos pedindo o tupi-guarani como língua oficial, seu jeito de receber chorando as visitas, suas pesquisas folclóricas; tudo procurando despertar o riso no leitor que, no final, presencia sua morte solitária e triste: “Com tal gente era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho, que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos algozes que eles tinham direito de matá-lo”.

Outro personagem que merece especial atenção é Ricardo Coração dos Outros, o seresteiro do subúrbio, que enriquece a narrativa em que se mostra a paixão pela cidade, os bairros distantes, as serenatas e os violões compondo um cenário pitoresco do Rio de Janeiro da época.

Estrutura da obra

A obra divide-se em três partes.

Primeira parte - Retrata o burocrata exemplar, patriota e nacionalista extremado, interessado pelas coisas do Brasil: a música, o folclore e o tupi-guarani. Esta parte está ligada à Cultura Brasileira, onde conhecemos a personagem e suas manias. Sabe tudo sobre a geografia do nosso país. Sua casa é repleta de livros que se refiram à nossa nação. O que come e bebe é tipicamente brasileiro. Até o seu jardim só possui plantas nativas. Chega a estudar violão – instrumento de má fama na época, pois era associado a malandros – com Ricardo Coração dos Outros, já que descobre que a modinha, estilo tipicamente brasileiro, era tocada com esse instrumento.

Duas são suas grandes ações. A primeira está em estudar o folclore do Brasil para incrementar uma festa de seu vizinho, General Albernaz com algum folguedo popular. Descobre então o Tangolomango, brincadeira que consistia na dança com dez crianças, até que um sujeito, com uma máscara, deveria pegar uma a uma sucessivamente. O problema é que Quaresma empolgou-se tanto com a brincadeira que terminou passando mal, por falta de ar, ou, como se dizia na época, acabou tendo um “tangolomango”. Por aí já se tem uma idéia da ironia do autor.

O clímax da falta de senso de ridículo do protagonista foi ter mandado à Câmara um requerimento, pedindo para que a língua oficial do Brasil deixasse de ser o Português, idioma emprestado e por isso incentivador de inúmeras  polêmicas entre nossos gramáticos (seu argumento, nesse aspecto, é o de que não podemos dominar um idioma que não é nosso e que, portanto, não respeita a nossa realidade. Idéias bastante interessantes, mas apenas isso, pois é ridículo imaginar que uma língua seja mudada por decreto). No seu lugar propõe o tupi.

Resultado: vira motivo de chacota até na Imprensa. Seus colegas de trabalham aumentam as constantes ironias que jogam sobre a ele. Um chega a dizer que Quaresma estava errado ao querer impor aos outros uma língua que nem ele próprio, autor do requerimento, dominava. Idéia inverídica, tanto que o protagonista, irado, não percebe que escreve um ofício em tupi. Quando o documento chega aos superiores, a conseqüência é nefasta: o protagonista é internado no hospício.

Segunda parte - Mostra o Major Quaresma desiludido com as incompreensões o que o faz se retirar para o campo onde se empenha na reforma da agricultura brasileira e no combate às saúvas. Nesta parte, dedicada à Agricultura Brasileira, vemos Quaresma refugiar-se num sítio que compra, em Curuzu, e tem por intenção provar que o solo brasileiro é o mais fértil do mundo. Dedica-se, portanto, a estudar tudo o que se refere a agricultura. Mais uma vez, distancia-se, em sua perfeição, da realidade. Torna-se defeituoso.

Terceira parte - Acentua-se a sátira política. Motivado pela Revolta da Armada, Quaresma apóia Floriano Peixoto e, aos poucos, vai identificando os interesses pessoais que movem as pessoas, desnudando o tiranete grotesco em que se convertera o "Marechal de Ferro". Quaresma larga seus projetos agrícolas ao saber que estava ocorrendo a Revolta da Armada, quando marinheiros se rebelaram contra o presidente Floriano Peixoto. Na filosofia do protagonista, sua pátria só seria grande quando a autoridade fosse respeitada. Em defesa desse ideal, volta para a Capital, para alistar-se nas tropas de defesa do regime.

O interessante é notar a alienação em que a população mergulha diante de um tema tão preocupante como uma revolta. Recuperada do susto dos constantes tiroteios, parte da população chega a ver tudo como um festival, havendo até quem colecionasse as balas perdidas.

Enfim, a revolta é sufocada. Quaresma é transferido para a Ilha das Cobras, onde trabalhará como carcereiro. É então que presencia uma cena que lhe é chocante. Um juiz aparece por lá e distribui (esse termo é o mais adequado mesmo) as condenações aleatoriamente, sem julgamento ou qualquer outro tipo de análise. Indignado, pois acreditava que sua pátria, para ser perfeita, tem de estar sustentada em fortes ideais de justiça, escreve uma carta para o presidente, pedindo a reparação de tal erro.

Infelizmente, o herói não foi interpretado adequadamente, o que revela uma certa miopia dos governantes. Por causa de tal pedido, é preso e condenado à morte, pois foi visto como uma traição. Há nesse ponto uma ironia, pois justo o único personagem que se preocupou com o seu país foi considerado traidor, enquanto outros, que se aproveitaram no conflito para conseguir vantagens políticas, como Armando Borges, Genelício e Bustamante, saíram-se vitoriosos.

No final, tal qual Dom Quixote, Quaresma acorda, recobra a razão. Percebe que a pátria, por que sempre lutara, era uma ilusão, nunca existira. Num momento pungente, tocante, descobre que passara toda a sua vida numa inutilidade.

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, na configuração dos elementos da narrativa, notamos a presença predominante da ironia e as impertinências contidas na figura central do romance, Quaresma, alegando que o tupi, por ser a língua nativa brasileira proporcionaria melhor adaptação ao nosso aparelho fonador. Além disso, segundo ele, os portugueses são os donos da língua e, para alterá-la teríamos de pedir licença a eles.

O narrador é solidário com sua personagem pois não deixa de criticar os que zombam de Quaresma. No livro, encontramos ora um Quaresma, entusiasmado, apaixonado pelo Brasil, ora um Quaresma desiludido, amargo, diante da ingratidão do país para com seus bons objetivos. Nesse ponto, o que vemos é um personagem condenado à solidão, já que seus ideais batem de frente com os interesses políticos e com o capital estrangeiro.

Desse modo, temos o personagem central vivendo três momentos na obra: valorizando as coisas da terra – a história, a geografia, a literatura, o folclore; no sítio do sossego a frustrada busca de uma solução para o problema agrário, o que faz o romance se vestir de uma profunda atualidade; finalmente, o envolvimento na Revolta da Armada, o que acaba lhe custando a vida.

Enredo

O funcionário público Policarpo Quaresma, nacionalista e patriota extremado, é conhecido por todos como major Quaresma, no Arsenal de Guerra, onde exerce a função de subsecretário. Sem muitos amigos, vive isolado com sua irmã Dona Adelaide, mantendo os mesmos hábitos há trinta anos. Seu fanatismo patriótico se reflete nos autores nacionais de sua vasta biblioteca e no modo de ver o Brasil. Para ele, tudo do país é superior, chegando até mesmo a "amputar alguns quilômetros ao Nilo" apenas para destacar a grandiosidade do Amazonas. Por isso, em casa ou na repartição, é sempre incompreendido.

Esse patriotismo leva-o a valorizar o violão, instrumento marginalizado na época, visto como sinônimo de malandragem. Atribuindo-lhe valores nacionais, decide aprender a tocá-lo com o professor Ricardo Coração dos Outros. Em busca de modinhas do folclore brasileiro, para a festa do general Albernaz, seu vizinho, lê tudo sobre o assunto, descobrindo, com grande decepção, que um bom número de nossas tradições e canções vinha do estrangeiro. Sem desanimar, decide estudar algo tipicamente nacional: os costumes tupinambás. Alguns dias depois, o compadre, Vicente Coleoni, e a afilhada, Dona Olga, são recebidos no melhor estilo Tupinambá: com choros, berros e descabelamentos. Abandonando o violão, o major volta-se para o maracá e a inúbia, instrumentos indígenas tipicamente nacionais.

Ainda nessa esteira nacionalista, propõe, em documento enviado ao Congresso Nacional, a substituição do português pelo tupi-guarani, a verdadeira língua do Brasil. Por isso, torna-se objeto de ridicularizarão, escárnio e ironia. Um ofício em tupi, enviado ao Ministro da Guerra, por engano, levá-o à suspensão e como suas manias sugerem um claro desvio comportamental, é aposentado por invalidez, depois de passar alguns meses no hospício.

Após recuperar-se da insanidade, Quaresma deixa a casa de saúde e compra o Sossego, um sítio no interior do Rio de Janeiro; está decidido a trabalhar na terra. Com Adelaide e o preto Anastácio, muda-se para o campo. A idéia de tirar da fértil terra brasileira seu sustento e felicidade anima-o. Adquire vários instrumentos e livros sobre agricultura e logo aprende a manejar a enxada. Orgulhoso da terra brasileira que, de tão boa, dispensa adubos, recebe a visita de Ricardo Coração dos Outros e da afilhada Olga, que não vê todo o progresso no campo, alardeado pelo padrinho. Nota, sim, muita pobreza e desânimo naquela gente simples.

Depois de algum tempo, o projeto agrícola de Quaresma cai por terra, derrotado por três inimigos terríveis. Primeiro, o clientelismo hipócrita dos políticos. Como Policarpo não quis compactuar com uma fraude da política local, passa a ser multado indevidamente.O segundo, foi a deficiente estrutura agrária brasileira que lhe impede de vender uma boa safra, sem tomar prejuízo. O terceiro, foi a voracidade dos imbatíveis exércitos de saúvas, que, ferozmente, devoravam sua lavoura e reservas de milho e feijão. Desanimado, estende sua dor à pobre população rural, lamentando o abandono de terras improdutivas e a falta de solidariedade do governo, protetor dos grandes latifundiários do café. Para ele, era necessária uma nova administração.

A Revolta da Armada - insurreição dos marinheiros da esquadra contra o continuísmo florianista - faz com que Quaresma abandone a batalha campestre e, como bom patriota, siga para o Rio de Janeiro. Alistando-se na frente de combate em defesa do Marechal Floriano, torna-se comandante de um destacamento, onde estuda artilharia, balística, mecânica.

Durante a visita de Floriano Peixoto ao quartel, que já o conhecia do arsenal, Policarpo fica sabendo que o marechal havia lido seu "projeto agrícola" para a nação. Diante do entusiasmo e observações oníricas do comandante, o Presidente simplesmente responde: "Você Quaresma é um visionário".

Após quatro meses de revolta, a Armada ainda resiste bravamente. Diante da indiferença de Floriano para com seu "projeto", Quaresma questiona-se se vale a pena deixar o sossego de casa e se arriscar, ou até morrer nas trincheiras por esse homem. Mas continua lutando e acaba ferido. Enquanto isso, sozinha, a irmã Adelaide pouco pode fazer pelo sítio do Sossego, que já demonstra sinais de completo abandono. Em uma carta à Adelaide, descreve-lhe as batalhas e fala de seu ferimento. Contudo, Quaresma se restabelece e, ao fim da revolta, que dura sete meses, é designado carcereiro da Ilha das Enxadas, prisão dos marinheiros insurgentes.

Uma madrugada é visitado por um emissário do governo que, aleatoriamente, escolhe doze prisioneiros que são levados pela escolta para fuzilamento. Indignado, escreve a Floriano, denunciando esse tipo de atrocidade cometida pelo governo. Acaba sendo preso como traidor e conduzido à Ilha das Cobras. Apesar de tanto empenho e fidelidade, Quaresma é condenado à morte. Preocupado com sua situação, Ricardo busca auxílio nas repartições e com amigos do próprio Quaresma, que nada fazem, pois temem por seus empregos. Mesmo contrariando a vontade e ambição do marido, sua afilhada, Olga, tenta ajudá-lo, buscando o apoio de Floriano, mas nada consegue. A morte será o triste fim de Policarpo Quaresma.
Monteiro Lobato nasceu na cidade de Taubate em 18 de abriu 1882. Foi um grande tradutor, escritor, contista e ensaista. Sua criação mais conhecida foi o Sítio do Picapau Amarelo. Faleceu em 4 de julho de 1948.
























Monteiro Lobato
Literatura Infantil

1920 - A menina do narizinho arrebitado
1921 - Fábulas de Narizinho
1921 - Narizinho arrebitado
1921 - O Saci
1922 - O marquês de Rabicó
1922 - Fábulas
1924 - A caçada da onça
1924 - Jeca Tatuzinho
1924 - O noivado de Narizinho
1927 - As aventuras de Hans Staden
1928 - Aventuras do príncipe
1928 - O Gato Félix
1928 - A cara de coruja
1929 - O irmão de Pinóquio
1929 - O circo de escavalinho
1930 - Peter Pan
1930 - A pena de papagaio
1931 - Reinações de Narizinho
1931 - O pó de pirlimpimpim
1932 - Viagem ao céu
1933 - Caçadas de Pedrinho
1933 - Novas reinações de Narizinho
1933 - História do mundo para as crianças
1934 - Emília no país da gramática
1935 - Aritmética da Emília
1935 - Geografia de Dona Benta
1935 - História das invenções
1936 - Dom Quixote das crianças
1936 - Memórias da Emília
1937 - Serões de Dona Benta
1937 - O poço do Visconde
1937 - Histórias de Tia Nastácia
1938 - O museu da Emília
1939 - O Picapau Amarelo
1939 - O minotauro
1941 - A reforma da natureza
1942 - A chave do tamanho
1944 - Os doze trabalhos de Hércules
1947 - Histórias diversas

Outras obras - temática adulta

O Saci Pererê: resultado de um inquérito (1918)
Urupês (1918)
Problema vital (1918)
Cidades mortas (1919)
Idéias de Jeca Tatu (1919)
Negrinha (1920)
A onda verde (1921)
O macaco que se fez homem (1923)
Mundo da lua (1923) 


Contos escolhidos (1923)
O garimpeiro do Rio das Garças (1924)
O choque (1926)
Mr. Slang e o Brasil (1927)
Ferro (1931)
América (1932)
Na antevéspera (1933)
Contos leves (1935)
O escândalo do petróleo (1936)
Contos pesados (1940)
O espanto das gentes (1941)
Urupês, outros contos e coisas (1943)
A barca de Gleyre (1944)
Zé Brasil (1947)
Prefácios e entrevistas (1947)
Literatura do minarete (1948)
Conferências, artigos e crônicas (1948)
Cartas escolhidas (1948)
Críticas e Outras notas (1948)
Cartas de amor (1948) 

































Vidas Secas, de Graciliano Ramos

Análise da obra

Narrado em 3ª pessoa (ao contrário das obras anteriores de Graciliano Ramos), Vidas Secas pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Nesta obra não é a personagem que ressalta nele, mas o narrador que se faz sentir pelo discurso indireto, construído em frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre em períodos simples. A obra pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos. Possui 13 capítulos até certo ponto autônomos, mas que se ligam pela repetição de alguns motivos e temas, como a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.

O que une os episódios no livro é a utilização de vários motivos recorrentes (a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seu conseqüente problema de linguagem, seu Tomás da bolandeira, a cama de varas de sinhá Vitória etc.), que dada a sua redundância e a maneira como são distribuídos, chegam a constituir um verdadeiro substituto da ação e da trama do livro.

Também as personagens são focalizadas uma por vez, o que mostra o afastamento existente entre elas. Cada uma tem sua vida particular, acentuando-se a solidão em que vivem. Vidas Secas é, portanto, a dramática descrição de pessoas que não conseguem comunicar-se. Nem os opressores comunicam-se com os oprimidos, nem cada grupo comunica-se entre si. A nota predominante do livro é o desencontro dos seres. Os diálogos são raros e as palavras ou frases que vêm diretamente da boca das personagens são apenas xingatórios, exclamações, ou mesmo grunhidos. A terra é seca, mas sobretudo o homem é seco. Daí o título Vidas Secas. O discurso do narrador é igualmente construído com frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre períodos simples. Escritor extremamente contido, com o pavor da verbosidade, Graciliano prefere a eloqüência das situações fixadas à eloqüência puramente verbal. O que há de libelo no livro se inclui na sua própria estrutura e não em discursos das personagens ou do autor.

Enredo

Capítulo 1 - Mudança

É a história da retirada de uma família, fugindo da seca. Fazem parte dela Fabiano, sua esposa Vitória, dois filhos, caracterizados pelo autor apenas como " menino mais novo" e "o menino mais velho", e a cachorra Baleia (deve-se lembrar que o romance fala em seis viventes, contando com o papagaio que eles comeram por não haver comida por perto). Nesse capítulo temos a descrição da terra árida e do sofrimento da família. As personagens não se comunicam; apenas duas vezes o pai, irritado com o menino mais velho, xinga-o. Essa falta de diálogos permanece por todo o livro, como também a intenção de não dar nome às crianças, para caracterizar a vida mesquinha e sem sentido em que vivem os retirantes, que não têm consciência de sua situação, embora, ainda nesse primeiro capítulo, Fabiano e Vitória sonhem com uma vida melhor: "Sinhá Vitória, queimando o assento no chão, as moas cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão.

Mais adiante é Fabiano quem sonha: "Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinhá Vitória provoca ria a inveja das outras caboclas ... e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria o dono daquele mundo... Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde.

Capítulo 2 - Fabiano

Mostra o homem embrutecido, mas ainda capaz de analisar a si próprio. Tem a consciência de que mal sabe falar, embora admire os que sabem se expressar. E chega à conclusão de que não passa de um bicho.

Capítulo 3 - Cadeia

Aqui, pela primeira vez, aparece a figura do soldado amarelo, que mais tarde voltará simbolizando a autoridade do governo. Igualmente, pela primeira vez, insinua-se a idéia de que não é apenas a seca que faz de Fabiano e sua família pessoas animalizadas. Ele é preso sem qualquer motivo e toma a analisar sua situação de homem-bicho. Só que, desta vez, não tem mais coragem de sonhar com um futuro melhor. Ao fim do capítulo, temos Fabiano ciente de sua condição de homem vencido e, pior ainda, sem ilusões com relação à vida de seus filhos.

Capítulo 4 - Sinhá Vitória

Se as aspirações do marido resumem-se em saber usar as palavras adequadas a uma situação, a de Vitória é uma cama de couro. Também essa cama será motivo diversas vezes repetido no decorrer da obra, como veremos adiante. Além de ser a personagem que melhor articula palavras e expressões, conseqüência de ser talvez a que mais tem tempo para pensar, uma vez que Fabiano trabalha o dia todo e à noite dorme, sem ter coragem para devaneios ou para falsear sua dura realidade, ela é caracterizada como esperta e descobre que o patrão rouba nas contas do marido (no capítulo Contas).

Capítulo 5 - O Menino Mais Novo

Também ele possui um ideal na vida: o de se identificar ao pai. No início do capítulo: "Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração."

Adiante: "Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar que podia ser Fabiano."

Em seguida: "E precisava crescer ficar tão grande como Fabiano, matar cabras à mão de pilão, trazer uma faca de ponta na cintura. Ia crescer espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha, calçar sapatos de couro cru."

E finalmente: "Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim, torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicocho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados."

Capítulo 6 - O Menino Mais Velho

"Tinha um vocabulário quase tão minguado coma o da papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia." O nível das aspirações dos componentes da família decresce cada vez mais. O ideal do menino mais velho é o de ter um amigo. A amizade de Baleia já lhe servia: "O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-separa não magoá-lo, sofria a carícia excessiva."

Capítulo 7 - Inverno

Temos a descrição de uma noite chuvosa e os temores e devaneios que desperta na família de Fabiano. A chuva inundava tudo, quase inundava a casa deles também, mas eles sabiam que dentro em pouco a seca tomaria conta de suas vidas outra vez.

Capítulo 8 - Festa

Apresenta primeiramente os preparativos da família, em casa, para ir à festa de Natal na cidade e, em seguida, dirigindo-se à festa. É, senão o mais, um dos mais melancólicos capítulos do livro — quando as personagens centrais da história, em contato com outras pessoas, sentem-se mais humilhadas, mesquinhas e ate mesmo ridículas. Percebem a distância em que se encontram dos demais seres e isso é novo motivo de humilhação para eles. Resta a sinhá Vitória a solução do devaneio: "Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira. unia cama de verdade."

Para Fabiano, não há esperanças: "Fabiano roncava de papo para cima... Sonhava agoniado... Fabiano se agitava. soprando. Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes retinas e ameaçavam-no com facões terríveis."

Capítulo 9 - Baleia

Conta a morte da cachorra. Caíra-lhe o pêlo, estava pele e ossos, o corpo enchera-se de chagas. Fabiano resolve matá-la para aliviar os sofrimentos dela. Os filhos percebem a situação, magoados e feridos por perderem um “irmão”: "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam..."

Já ferida, com os demais membros da família chorando e rezando por ela, Baleia espera a morte sonhando com outro tipo de vida: "Baleia queria dormir Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano. um Fabiano enorme. As crianças se esposariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás gordos, enormes."

Percebe-se, aliás, que dos seis componentes da família, Baleia é quem, ao lado de Vitória, com maior clareza, consegue elaborar seus devaneios.

Capítulo 10 - Contas

É outro capítulo melancólico. Se em Cadeia Fabiano conscientiza-se de que há no mundo homens que, por possuírem uma posição social diferente da dele, podem machucá-lo, se em Festa os familiares percebem sua situação inferior e desajeitada e sentem-se ridículos, agora chegam à conclusão de que pessoas com dinheiro também podem aproveitar-se deles. São duas as reações de Fabiano ao notar-se roubado pelo patrão: primeiro revolta, depois descrença e resignação. Vale a pena ressaltar nesse capítulo que é sinhá Vitória quem percebe que as contas do patrão estão erradas. Ela é caracterizada como a mais arguta e perspicaz dos seis viventes da família.

Capítulo 11 - O Soldado Amarelo

Temos uma descrição mais profunda desta personagem. Observa-se que, fisicamente, é menos forte que Fabiano; moralmente é uma pessoa corrupta, enquanto Fabiano é honesto; contudo é por ele respeitado e temido, por ocupar o lugar de representante do governo.

Capítulo 12 - O Mundo Coberto de Penas

A seca está para chegar outra vez, prenunciando mais miséria e sofrimento. Fabiano faz um resumo de todas as desgraças que têm marcado sua vida. Há muito não sonha mais. Seus problemas agora são livrar-se de certo sentimento de culpa por ter matado Baleia e fugir de novo.

Capítulo 13 - Fuga

Continua a análise de Fabiano a respeito de sua vida. A esposa junta-se a ele e refletem juntos pela primeira vez. Vitória é mais otimista e consegue transmitir-lhe um pouco de paz e esperança por algum tempo. E numa mistura de sonhos, descrenças e frustrações termina o livro. Graciliano Ramos transmite uma visão amarga da vida dos retirantes

Comentários

Vidas Secas começa por uma fuga e acaba com outra. No início da leitura tem-se a impressão de que Fabiano e sua família fogem da seca: "Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente. Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram-se as suas desgraças e os seus pavores."

O  último capítulo, Fuga, descreve cena semelhante: "A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços franzidos rezando rezas desesperadas. Encolhido no banto do copiar Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, torturadas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. Mas quando a fazenda se despovoou. viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher; matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao inundo, como negro fugido.

O  romance decorre entre duas situações idênticas, de tal modo que a fim, encontrando o principio, fecha a ação num circulo. Entre a seca e as águas, a vida do sertanejo se organiza, do berço à sepultura, a modo de retorno perpétuo.

Mas será apenas a seca o motivo dessa fuga? Percebemos no romance a descrição de dois mundos: o mundo de Fabiano e o mundo composto pela sociedade. Do primeiro, fazem parte Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo, Baleia e o papagaio. Do segundo, seu Tomás da bolandeira, o patrão de Fabiano e o soldado amarelo. Tanto as personagens do primeiro grupo como as do segundo vivem na mesma região, sofrendo todas a mesma seca. Por que não foge dela o patrão de Fabiano? Porque ele possui as terras e o dinheiro, porque ele emprega os trabalhadores segundo suas próprias leis, fazendo deles meros escravos sem qualquer direito a uma vida digna e independente.

Caracterizado como dono e opressor, o patrão não tem necessidade de fugir da seca. De seu Tomás também Fabiano sente-se distante. Porque seu Tomás era culto, sabia comunicar-se com precisão, ao passo que ele, Fabiano, só sabia grunhir e mal articulava uma ou outra palavra.

Se o dinheiro do patrão representa um fator de humilhação para Fabiano, a linguagem de seu Tomás significa a cultura e a educação que Fabiano jamais poderá possuir. E ele se humilha mais uma vez.

Seu Tomás simboliza ainda um status econômico de segurança e conforto. De fato, sinhá Vitória manifesta sempre o desejo de possuir uma cama igual a dele, e esse sonho é a mais alta aspiração que possui. O soldado amarelo, por sua vez, simboliza o governo. Metido num “fuzuê sem motivo”, Fabiano acaba preso. Temos agora um Fabiano não apenas humilhado, mas vencido, consciente de sua situação animalizada dentro de uma sociedade em que os mais fortes sempre vencem os mais fracos. E é por esse mesmo motivo que, no capítulo O Soldado Amarelo, ficando as duas personagens, lado a lado, sem mais ninguém por perto e Fabiano, podendo revidar a injustiça anteriormente sofrida, resolve deixá-lo em paz.

Fabiano entrevê na organização do Estado a entidade que humilha; o representante dessa entidade, às vezes, e até frágil, mas a estrutura condiciona o humilhado à incapacidade de reagir.

Entre os dois mundos que acabamos de descrever “não há um sistema de trocas, senão um mecanismo de opressão e bloqueio”. O que parece ser importante para Graciliano Ramos é denunciar a desigualdade entre os homens, a opressão social, a injustiça. São esses os temas de Vidas Secas, por isso foi dito no início desta análise que o livro não deve ser considerado apenas regionalista. Em momento algum o esmagamento de Fabiano e de sua família é explicado apenas pela seca ou por qualquer fator geográfico.

Já foi feita uma referência anteriormente sobre a consciência de Fabiano quanto à sua condição animalizada na sociedade a que pertence. Affonso Romano de Sant’Ana faz uma aproximação de Fabiano à Baleia, e de sinhá Vitória ao papagaio. Segundo ele, o pensamento de Fabiano, no capítulo que recebe seu nome, passa por três etapas:

"Primeiramente, ele se considera positivamente dizendo: Fabiano, você é um homem’. Depois se estuda com menos otimismo, e considerando mais realisticamente sua situação se corrige ‘— Você é um bicho, Fabiano - Ou seja: um individuo que não sendo exatamente um homem, pelo menos sabia se. safar dos problemas. No entanto. poucas frases adiante, nova alteração se dá em suas considerações. E de homem que se aceitara apenas como um bicho esperto, ele se coloca como um animal: “o corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu.

Decaindo do ponto mais elevado da escala, passando a individuo apenas esperto e depois a um semelhante do animal, Fabiano termina por se aproximar de Baleia, a quem, em contraposição, em seu diálogo-a-um ele considera: “— Você é bicho, Baleia ‘, Nesta frase estaria integrado o sentido duplo do termo “bicho ‘. aplicado a Baleia: animal / esperteza, positivo / negativo. Uma análise mais interessada nestes levantamentos poderia perfilar dentro do livro todos os processos sistemáticos de zoomorfização dos animais, destacando principalmente os verbos e adjetivos conferidos a um e outro elemento numa mesma simbiose metafórica.

A identificação entre sinhá Vitória e o papagaio acentua-se sobretudo no capítulo Sinha Vitória, quando ela tenta perceber o sentido da comparação que seu marido fizera do seu modo de caminhar com o do papagaio: "Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usara nas festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como papagaio, era ridícula."

A partir dai a imagem dos pés de Vitória vai se fundindo à imagem do papagaio, até que estilisticamente a superposição se destaca em frases como essas: Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Aí o adjetivo pobre já não se refere exclusivamente ao papagaio que foi morto para matar a fome da família, mas descreve a própria sinhá Vitória tão “infeliz” como aquele “pobre louro “. No resto do capítulo, o autor usa de um processo de recorrência da imagem da ave, agora ampliando-lhe a área semântica, referindo-se à galinha, especialmente a “galinha pedrês", devorada pela raposa.

























Menino de Engenho, de José Lins do Rego

Análise da obra

Narrado em 1ª pessoa por Carlos Melo (personagem), que aponta suas tensões sociais envolvidas em um ambiente de tristeza e decadência, é o primeiro livro do ciclo da cana-de-açúcar. Publicado em 1932, Menino do Engenho é a estréia em romance de José Lins do Rego e já traz os valores que o consagraram na Literatura Brasileira.

Durante a década de 30 do século XX, virou moda uma produção que se preocupava em apresentar a realidade nordestina e os seus problemas, numa linguagem nova, introduzida pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 22. José Lins do Rego seria o melhor representante dessa vertente, se certas qualidades suas não atenuassem fortemente o tom crítico esperado na época.

A intenção do autor ao elaborar a obra Menino de Engenho, era escrever a biografia de seu avô, o coronel José Paulino, que considerava uma figura das mais representativas da realidade patriarcal nordestina. Seria também a autobiografia das cenas de sua infância, que ainda estavam marcadas em sua mente. Mas o que se constata é que o biógrafo foi superado pela imaginação criadora do romancista: a realidade bruta é recriada através da criatividade do gênero nordestino.

É a história típica, natural e sem retoques de uma criança, Carlos, órfão de pai e mãe, que, aos oito anos de idade, vem viver com o avô, o maior proprietário de terras da região - coronel José Paulino.

Carlos é criado sem a repressão familiar e mesmo sem os cuidados e atenções que lhe seriam necessários diante das experiências da vida. Vê o mundo, aprende o bem e o mal e chega a uma provável precocidade acerca dos hábitos que lhe eram "proibidos", mas inevitáveis de serem adquiridos.

Pela ausência de orientação, toma-se viciado, corrompido, aos 12 anos de idade. Além dos problemas íntimos do menino, desorientado para a vida e para o sexo, temos a análise do mundo em que vivia, visto por Carlos, que é o narrador-personagem.

Carlos vê o avô como um verdadeiro Deus, uma figura de grandiosidade inatingível. O engenho é o mundo, um império, de onde o coronel José Paulino dirige e guia os destinos de todos. E, em conseqüência, Carlos considera-se, e é considerado pelos servos, escravos e agregados, o “coronelzinho” cujas vontades têm que ser rigorosamente realizadas.

Descreve com emoção a vida dos escravos, a senzala, o sofrimento e os castigos do “tronco”. Uma cena a ser destacada é a “enchente” do rio, vista com admiração e susto por Carlos, constituindo uma descrição de grandiosidade bíblica.

Também vêm à tona as superstições e crendices comuns entre as camadas populares, como a do “lobisomem”.

O romance tem como cenário a região limítrofe entre Pernambuco e Paraíba, o que pode ser deduzido pelas descrições da paisagem e da vida dos engenhos de açúcar.

Os bandidos e cangaceiros, comuns na região, são mostrados como única forma de reação social de um povo oprimido.

Personagens

Carlinhos - É o narrador do romance. Órfão aos quatro anos, tornou-se um menino melancólico, solitário e bastante introspectivo. De sexualidade exacerbada, mantém, aos doze anos, a sua primeira relação sexual, contraindo “doença-do-mundo” - a popular gonorréia.

Coronel Zé Paulino - É o todo-poderoso senhor de engenho - o patriarca absoluto da região. Era uma espécie de prefeito - administrava pessoalmente, dando ordens e fazendo a justiça que ditava a sua consciência de homem bom e generoso.

Tia Maria - Irmã da mãe de Carlinhos (Clarisse), torna-se para este a sua segunda mãe. Querida e estimada por todos pela sua bondade e simpatia, era chamada carinhosamente de Maria Menina.

Velha Totonha - É uma figura admirável e fabulosa. Representa bem o folclore ambulante dos contadores de histórias.

Antônio Silvino - Representa bem o cangaceiro sempre temido e respeitado pelo povo, em virtude de seu senso de justiça, tirando dos ricos e protegendo os fracos. Compõe bem a paisagem nordestina.

Tio Juca - Não chega a representar um papel de destaque no romance. Por ser filho do senhor de engenho, fazia e desfazia (sobretudo sexo com as mulatas), mas não era punido. De certa forma, representa o papel de pai de Carlinhos.

Lula de Holanda - Embora ocupe pouco espaço, o Coronel Lula é uma personagem relevante, pois representa o senhor de engenho decadente que teima em manter a fachada aristocrática.

Sinhazinha - Embora não fosse a dona da casa (era cunhada do Coronel), mandava e desmandava no governo da casa-grande. Era odiada por todos por seu rigor e carranquice, e pode ser identificada com as madrastas ruins dos contos populares.

Negras - Restos do tempo de escravidão, destacam-se a negra Generosa, dona da cozinha, a vovó Galdina, que vivia entrevada numa cama.

Enredo

O romance, narrado em primeira pessoa, apresenta uma estrutura memorialista, em quarenta capítulos. O tempo flui cronologicamente: o narrador (Carlinhos) tem quatro anos quando a narrativa começa e doze, quando termina o livro.

A mãe do narrador (Clarisse) está morta, assassinada pelo pai no quarto de dormir. “Por quê?” Ninguém sabia compreender”. O menino, apesar de pequeno, sente o impacto da morte da mãe e a solidão que esta lhe deixa. “Então comecei a chorar baixinho para os travesseiros, um choro abafado de quem tivesse medo de chorar”.

O pai então é levado para o presídio. Era uma pessoa nervosa, um temperamento excitado, “para quem a vida só tivera o seu lado amargo”. Num momento de desequilíbrio, matara a esposa com quem sempre discutia. O narrador o recorda com saudade e ternura. O narrador lembra também, com ternura e carinho, a mãe tão precocemente ceifada pelo destino. Recorda as suas carícias, a sua bondade, a sua brandura. “Os criados amavam-na”. Era filha de senhor de engenho, mas “falava para todos com um tom de voz de quem pedisse um favor”.

Um mundo novo espera o narrador. “Três dias depois da tragédia, levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele”. Conduzido pelo tio Juca, que viera buscá-lo, encanta-se com tudo que vê: tudo é novidade naquele mundo novo. A imagem que sempre fizera do engenho era a “de um conto de fadas, de um reino fabuloso”. À primeira vista, a realidade ia comprovando fantasia.

No engenho, é levado para receber a bênção do avô e da preta velha Tia Galdina e ganha uma nova mãe – a tia Maria. No dia seguinte, com o mergulho nas águas frias do poço, o narrador está batizado para a nova vida que vai começar. Aos poucos, o narrador vai penetrando no mundo novo do engenho. Levam-no para ver o engenho e ele fica deslumbrado com o seu mecanismo. Tio Juca vai-lhe explicando todos os detalhes.

Os primos chegam para passar as férias na fazenda e o narrador se solta de vez – “já estava senhor de minha vida nova”; passeios, banhos proibidos, brincadeiras, sol o dia todo e as recomendações de Tia Maria. Ao lado da fada boa e terna que era tia Maria, vivia no engenho uma velha de nome Sinhazinha que “tomava conta da casa do meu avô com um despotismo sem entranhas”. “Esta velha seria o tormento da minha meninice”. Todos a temiam e fugiam dela. “As negras odiavam-na. Os meus primos corriam dela como de um castigo”.

A prima Lili – “magrinha e branca”; “parecia mais de cera, de tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos louros até o pescoço”. “Na verdade a prima Lili parecia mais um anjo do que gente”. E tal sucedeu com a pobrezinha: um dia, amanheceu vomitando preto e morreu, para desconsolo do narrador, que se afeiçoara muito a ela. Com a morte de Lili, o desvelo e os cuidados de tia Maria com o narrador se acentuam. Era tempo das primeiras letras, mas nada entra na sua cabeça, pois só pensava na liberdade nas patuscadas no mundo lá fora. Ainda recorda do flagelo das secas: as aves de arribação.

O cangaceiro Antônio Silvino faz uma visita de cortesia ao engenho Santa Rosa. Há uma grande expectativa sobretudo por parte dos meninos. O famoso cangaceiro chega e é recebido pelo senhor de engenho. A partir, entretanto, o narrador demonstra o seu desencanto: “Para mim tinha perdido um bocado de prestígio. Eu fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura de herói”. É que o mito se tornou real, descendo do seu pedestal. Organiza-se um passeio ao sítio do Seu Lucino, nas proximidades do engenho. No caminho, gente que voltava da feira com seus quilos de carne. A caravana chega ao sítio e são recebidos com a boa hospitalidade sertaneja. À tardinha, voltam todos para casa, quando os moleques começam a falar de mal-assombrados.

O narrador leva a sua primeira surra pelas mãos da velha Sinhazinha. Ficou desolado o dia todo, e à noite, foi dormir pensando na vingança: “Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como a madrasta da História de Trancoso.”

A cheia do Paraíba chegou devastadora, matando gente e animais, destruindo plantações e casas. A gente do engenho refugia-se na casa do velho Amâncio, fugido da fúria das águas. A enchente tinha sido arrasadora e as águas chegaram a penetrar na casa grande. Os prejuízos eram enormes .

As primeiras letras, enfim, vieram com a bela Judite, mulher do Dr. Figueiredo. Com ela, começam a surgir os primeiros lampejos do amor. “Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços”.

Depois mandaram-no para uma escola onde tinha todas as regalias, em meio da miséria geral, por ser o “neto do Coronel Zé Paulino”. Paralelamente às letras, começa a iniciação sexual, apesar da pouca idade. Com Zé Guedes, moleque que o levava e buscava na escola, aprendeu “muita coisa ruim”. Com o primo Silvino e outros andou fazendo muita “porcaria” com as cabras e vacas da fazenda.

Nas visitas e incertas do Coronel José Paulino à sua propriedade, está patente todo o seu poder de senhor de engenho, de patriarca absoluto daquelas terras.

A religião no engenho se restringia aos limites do quarto de santos com suas estampas e imagens. O Coronel Zé Paulino não era um devoto, e mesmo a tia Maria, sempre preocupada com rezas e orações, não era de freqüentar igreja e comungar. Na semana santa, especialmente na Sexta-Feira da Paixão, havia um recolhimento natural em obediência à tradição.

O cabra Chico Pereira está amarrado ao tronco para receber a punição pelo malfeito: A vítima, a mulata Maria Pia, jogara-lhe a culpa, e o senhor patriarcal, inflexível, ordenara que o moleque assumisse. Convidada a jurar sobre o livro sagrado, a mulata confessa.

Uma traquinagem de criança e um ato de heroísmo – eis a síntese deste capítulo. O primo Silvino, querendo provocar um desastre, coloca uma pedra enorme na linha de trem para vê-lo tombar. O narrador imagina a cena terrível com gente morta e ferida e, num gesto heróico, atira-se diante do trem e rola a pedra dos trilhos.

Pelo engenho, corria o boato de que um lobisomem estava aparecendo na Mata do Rolo. “Diziam que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito”. Seria José Cutia? Além do lobisomem, outros duendes da superstição popular povoaram a infância do narrador: o zumbi, as caiporas, as burras-de-padre etc.

A velha Totonha com suas histórias fabulosas encantam o narrador. Quando passava pelo engenho era um festa. Suas histórias, sempre de reis e rainhas comoviam. Ela sabia como ninguém contar uma história. Mas “o que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos (...) Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.

“A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pregada à casa-grande, com suas negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabra do eito e as boas cabras do cifo”. Apesar de terem sido aforriados, muitos ficaram no engenho. Aí estava a velha Galdina, doente e alquebrada, Generosa, que mandava na cozinha da casa-grande e a demoníaca Maria Gorda.

Tal como um monarca, o senhor de engenho, sentado no seu trono, ia ouvindo as queixas e pedidos dos seus súditos. 

Mais um passeio. Agora é ao engenho do Oiteiro. Saem cedo e vão de carro-de-boi. Destaca-se aqui a habilidade do carreiro Miguel Targino na condução dos bois. Por onde passa a comitiva é recebida com festejos e cortesia. Destaca-se em cada lugar a hospitalidade e gentileza do povo simples e humilde. Tia Maria, a senhora do Santa Rosa, retribui a tudo com simpatia.

A morte trágica da mãe o marcou profundamente e, apesar das brincadeiras e traquinagens com os moleques, era um menino melancólico que buscava sempre a solidão.

Contadores de histórias — os mestres de ofício dos quais o narrador se tornou amigo. É através deles que ele fica conhecendo o Capitão Quincas Vieira, irmão mais novo do Coronel Zé Paulino, que morreu brigando.

Um antigo sonho do narrador se realiza: ganhou um lindo Carneiro para montaria. Chamava-se Jasmim. Entretinha-se com ele boa parte do tempo e, com isso, os canários ganharam a liberdade. Nos seus passeios com Jasmim, na solidão do entardecer, a melancolia de sempre, “arrastava-me aos pensamentos de melancólico”.

Da história triste do Santa Fé e seu senhor decadente - O Coronel Lula de Holanda, surgiu um dos grandes romances de José Lins: Fogo Morto. O Santa Fé é um engenho em decadência, símbolo de um mundo que está prestes a ruir. Em vão, o Coronel tenta manter a fachada com seu cabriolé. Um pouco mais e o Santa Fé estará de fogo morto.

A doença tira a liberdade do narrador por um bom espaço de tempo. Era o puxado, “uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim”. Amargou, por causa do puxado, muitos dias de solidão e de cama.

O narrador penetra no quarto do tio Juca e na sua intimidade: “uma coleção de mulheres fluas, de postais em todas as posições da obscenidade”.

A descrição de um incêndio de largas proporções faz brotar de todos os cantos a solidariedade do sertanejo. Mais uma vez sobressai aqui a figura do avô, com sua autoridade e com seus gritos de ordem para conter o fogo que ia devastando o canavial.

Um exército de homens miseráveis e esfarrapados trabalham no eito: “estavam na limpa do partido da várzea”. “Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras”. Muitos desfilam pelo capítulo — uns com suas virtudes, outros com seus defeitos. Em todos, um ponto comum: a vida de servidão, a miséria, a degradação.

Após a ceia, o Coronel Zé Paulino gostava de contar seus casos de escravos a senhores de engenho, antes e depois da abolição. As ruindades do Major Ursulino com os negros sempre se destacam nas suas histórias. Gostava também de relembrar a visita de Dom Pedro ao Pilar e tinha grande orgulho de sua casta branca e nobre.

O amor desperta forte no coração do narrador que possuía então oito anos. Era Maria Clara, uma prima civilizada do Recife, que estava ali com a família para passar férias. A paixão é violenta: os passeios, o beijo, as lágrimas da partida.

A loucura solitária e miserável do pai remete o narrador a doentes (como o Cabeção e o doido) e a maus presságios que o deprimem. O seu puxado atormenta-o e os cuidados o aprisionam: “a minha vida ia ficando como a dos meus canários prisioneiros”. Por outro lado, a sexualidade precoce encontra na negra Luísa uma comparsa das “minhas depravações antecipadas”; “só pensava nos meus retiros lúbricos com o meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa.”

O casamento da tia Maria foi digno da opulência e grandeza do senhor de Engenho do Santa Rosa. Atraiu gente de toda a redondeza e do Recife. É com tristeza que tudo é descrito pelo narrador que perde a sua segunda mãe: “E pela estrada molhada das chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia”. Até mesmo o Jasmim, o carneiro montaria, fora-se nessa, servindo de almoço e jantar, juntamente com outros, aos inúmeros convidados.

“— Você, no mês que entra, vai para o colégio”. Arranjavam-se os preparativos, e, com o casamento de tia Maria, “vivia a desejar o dia da minha partida”. Já estava grandinho (cerca de doze anos) e não sabia quase nada. Sabia ruindades, puxava demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria.

Lá fora, a chuva caía fazendo crescer as plantações: “os pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo”.

Uma briga entre dois negros se encerra com a morte de um deles que deixou mulher e cinco filhos órfãos. Levam preso o assassino, mas a alma do morto continuou pairando pelo engenho sob a forma de assombração.

“Tinha uns doze anos quando conheci uma mulher, como homem”. E, com ela, apanhou doença-do-mundo a qual ia operando nele uma transformação: o menino de calça curta ia ficando na curva do tempo e dali, precocemente, ia brotando um rapazinho de sexualidade exacerbada. “Recorriam ao colégio como a uma casa de correção”.

Enfim chega a época de o depravado menino ir para o colégio. “Uma outra vida ia começar para mim ". Tudo ia ficando para trás com o trem em movimento.

Carlinhos “levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o corpo”. Era o oposto de Sérgio, em O Ateneu, que “entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade.”

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